- Striknik!
- Quê que é isso?
- É uma palavra, eu que inventei.
- Inventou pra quê?
- Pra ter uma palavra que só eu sei e os outros não.
- “Márcio, você está demorando, menino; anda, vem almoçar.”
- Você está com as mãos sujas, não te falei pra não comer assim? Levanta, vai lavar.
- Striknik!
- Quê que é isso? Pare de fazer esses barulhos bobos.
O menino viu o passarinho na árvore, assobiou, o passarinho respondeu; o menino chegou mais perto da janela.
“Olha as horas, quer perder a escola? Lava logo essas mãos.”
Fez uma careta no espelho: sou feio, sou cabeludo, sou o lobisomem, vou comer todo mundo, inhaaau, sou o lobo mau, para que esses olhos tão grandes? Para melhor te ver; para que esses braços tão compridos? Para melhor te abraçar; e para que esses dentes tão agudos?
- Não quer mais não.
- Por quê?
- Tou sem fome.
- Come esse resto aí, você não comeu nada, vai ser assim agora todo dia? Quer virar um palito?
- Quero.
- Toma! Respondão! Domingo você não vai na matinê, viu? Aprender a não responder a sua mãe. Mal educado.
Tom correndo atrás de Jerry e os dois lutando de espada na torre do castelo e o outro ratinho chegando por trás socando a ponta de um alfinete em Tom e Tom dando um berro e a turma toda rindo e as balinhas passando de mão em mão e depois a volta pelo Parque brincando de pegar correndo entre as árvores e gente e gritaria e os passarinhos no viveiro e os peixes no lago e sorvete e pipoca.
- Então não vou na escola também, pronto.
- Não? Sabidinho; quer levar umas palmadas? Você está ficando atrevido, hem?
Os ônibus iam com velocidade, voando, quase deitavam na hora de fazer a curva.
Tchum: pá! Pronto. Estraçalhado lá no chão, sangue e miolo pra todo lado, a cabeça esmagada. Coitado, ele era um menino tão bom. Iam ver.
- Quando se iniciou a guerra do Paraguai?
- Mil oitocentos e ...
- E...
- Noventa.
- Noventa?
- Noventa e cinco.
- Não é não, Senhor Márcio.
Silêncio e medo na sala.
- Você sabia que eu marquei esse ponto para casa?
- Sabia.
- Sabia?...
- Sabia sim senhor.
- Ah; sabia sim senhor; agora melhorou. E por que você não estudou?
- Eu estudei.
- Já disse que não tolero alunos mentirosos.
- Eu não estou mentindo.
- Se você estudou, então por que você não soube nada até agora?
- Porque eu esqueci.
- Esqueceu?...Sabe quê eu faço com alunos que esquecem?...
- Não.
- Como é que é?...
- Não, senhor.
- Eu dou uma bolinha, uma daquelas bolinhas redondinhas na caderneta; sabe quê que é isso?
- Não.
- Responda com educação, seu malcriado! Sua mãe não te deu educação em casa não?
- Vá à merda.
- O quê?...
Não devo desrespeitar os meus mestres.
Não devo desrespeitar os meus mestres.
Não devo desrespeitar os meus mestres.
O pátio escuro e sem ninguém: sentou-se debaixo da mangueira, e seus olhos estufaram de choro.
Iam ver, ia ficar ali até de noitão, pensariam que um ônibus daqueles tinha pegado ele, procurariam na cidade, na casa dos outros, telefonariam, ficariam aflitos, chorariam, teriam saudades dele, iam ver. Sua mãe não te deu educação, não? Zero, no fim do ano bomba. A mão traçando calmamente na caderneta, os olhos rindo, a boca má. Se você estudou, então por que você não soube nada até agora? È porque tinha esquecido mesmo, não estava mentindo, tinha estudado sim, tinha estudado tudo, todos os pontos, sabia tudo, do primeiro ao último.
Sentou-se no meio-fio, desanimado de voltar para casa, as mão segurando a cabeça, os livros largados no chão.
Zuuummmmmmmm vup!
Zuuummmmmmmm vup!
Os faróis saltavam na esquina, vinham doidos, cegando-o, os ônibus deitavam na curva quase em cima dele.
Quê que você estava fazendo até essa hora na rua? Já não te falei pra vir logo pra casa? Onde você foi? Aposto que estava andando com algum moleque por aí. Tenho de repetir quantas vezes? Não adianta te pôr de castigo? Você não aprende? Será que você não tem mesmo jeito?
- E aí?
- Ele me pôs de castigo depois da aula, copiando linhas.
- Por causa do zero?
- Não.
- Por quê?
- Porque eu respondi a ele.
- Você respondeu a ele, meu filho? Por que você respondeu a ele?
- Ele falou que eu não tinha estudado. Eu tinha.
- E precisa responder a ele por causa disso?
- Ele falou que a senhora não me dá educação. Não gosto que os outros falem assim.
A mãe suspirou.
- Vai tomar o banho; eu vou esquentar sua comida.
- Mãe...
- O quê?
- Não vou voltar na escola mais não.
- Por quê?
- Não quero gastar à toa o dinheiro do Papai.
A mãe o olhou, compreensiva.
- Você tem que estudar, bem...
- Eu estudei, a senhora não viu eu estudando?
- Então como que você ganhou zero?
- Porque eu respondi errado.
- Mas você não sabia?
- Sabia.
- Tudo o que ele perguntou lá você sabia?
- Sabia.
_ E por que você não respondeu certo?
- Porque eu esqueci.
- Mas esqueceu por quê?
- Por quê? Porque eu não lembrei, uai.
A mãe suspirou.
- Vai; vai tomar o banho.
O menino foi andando devagarinho. Encostou o rosto na parede fria.
- Mãe...
- O quê?
- Eu sou um mau filho?...
- Mau filho? Não, de jeito nenhum; você é um menino meio levado, mas não um mau filho, isso não; por quê?
- Porque eu acho que eu sou...
- Não é não- a mãe engoliu apertado. – Você sai com umas coisas...
O menino correu e saltou na quina da banheira.
- Striknik! Striknik!
VILELA, Luiz. Contos da Infância e da adolescência. 2º ed. – São Paulo: Ática, 2005.

3 comments:
Olha, tem dessas vicissitudes na vida, né? Quando menos esperamos, encontramos. Parabéns pela iniciativa! Nonada! Apareça por lá, no nosso flash http://flashpeople.blogspot.com/
Abraços
Joe
Lindo! A força e o poder da escrita de um texto. Voltei aos tempos da minha quinta série, no coneco dos anos 80. Amei.
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